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Ti Amélia: 98 anos de História sob o chapéu de Gandaresa

Ti Amélia: 98 anos de História sob o chapéu de Gandareza
Na fotografia com a sua bisneta Cátia (34 anos) … aos 96 anos.

Partiu hoje – com o seu chapéu – a última Gandareza Genuína…

Há mais de 2 meses “apeteceu-me” escrever o texto que se segue… coincidências…

Hoje ganhou mais sentido e, saudade…e fica em jeito de homenagem a quem Tanto se Deu.

Cá vai… ainda escrito no presente.

Ti Amélia … “ti” de tia, como sempre tratávamos e tratamos, as pessoas mais velhas aqui na Gândara.

Lembro outras que partiram na minha infância, que usavam ainda o traje tradicional completo…
A Ti Ester dos ovos, a Ti Maria Bragança, a Ti Ana Carriço…

“Traje da Mulher da Gândara:

A roupa de trabalho era a roupa de todos os dias. As mulheres traziam lenços na cabeça, que as protegiam do sol e do mau tempo. Ás vezes, por cima, traziam um pequeno chapelinho redondo e preto.
Usavam blusas de manga comprida, que muitas vezes fechavam por trás.
Traziam saias com saiotes até meia perna, e por cima um avental.  Isso tudo era ligado por uma faixa comprida ao nível das ancas (levantava as saias para não as sujar).” Fonte aqui

A Ti Amélia é a última das gandaresas, que nunca abdicou de usar o seu típico chapelinho com pena de pavão… Trazendo-o vivo e em funções até ao séc.XXl

A minha avó da Tocha e a Ti Felismina também o usaram até partirem… talvez por isso o meu pai (fundador da Montalvo e da Greenside), dissesse sempre à Ti Amélia ”Você nunca deixe de usar esse chapéu!!” ao que ela respondia bem disposta… “enquanto tiver o meu juízo, vou usa-lo sempre” … e usa… (usava).

Mãe de 5 filhos, plantava e semeava tudo o que era preciso para a panela e o milho para a broa que ainda sobrava para vender, e para a criação e mais tarde para as vacas leiteiras, que fizeram desta, a região leiteira por excelência.

“Nesta terra não se pode ser Mulher nem vaca!..”

Dizia mais tarde a minha orientadora de estágio, alfacinha de gema, mas conhecedora da dureza do campo… ao ver o labor constante das mulheres com as vacas …a transportar e trabalhar no campo e na ordenha manual em casa e mais tarde colectiva, de manhã cedo e ao final do dia; muitas vezes já noite escura… tendo ainda que chegar a casa e fazer a “ceia” …

Invariavelmente “masturar” (misturar) os feijões (secos), que tinha deixado ao lume (lareira) a cozer com um pedaço de toucinho, à hora do almoço, com a verdura da época – a maioria das vezes couves e  nabos mas também feijão verde e ervilhas. Por sorte teve 2 filhas, que lhe aliviavam as tarefas de casa, desde tenra idade.

Com tudo isto, a Ti Amélia ainda arranjava tempo, um sorriso e simpatia para os fregueses
da mercearia e taberna, onde ajudava o marido, o Ti Nocêncio (Inocêncio):
É ti Amélia a Minh´avó mandou-me buscar…
É pra apontar… até a mnh´avó receber o dinheiro do leite ou vender o milho”

E lá trazia eu, em saco ou cartuchos de papel “cinzento reciclado e absorvente”:
(sempre uma coisa de cada vez … já praticavamos o “desperdício zero”)

– 0,5 kg de açúcar amarelo
– 100g de café (mistura de cevadas com chicória torradas)
– Um bocado de sabão azul e branco ou rosa
– 1 litro de petroleo pro candeeiro de vidro, pois a lectricidade foi uma conquista tardia.

– Uma colher de “pós” pro soalho da cozinha (anilina, para dar a cor típica, do soalho de tábuas de madeira, que era lavado ao Sábado … quando um dos filhos era rapariga)…
– Um quadrado de marmelada…

Às vezes lá ganhava um reboçado…

O “fiel amigo” bacalhau… mesmo da “candonga” quando andava racionado…
Era a minha mãe ou o meu pai que comprava.

Era na taberna da Ti Amélia e do Ti Nocêncio já de porta fechada, que apesar do sono, e à luz do candeeiro de petróleo ou do petromax, com cheiro de bacalhau misturado com aroma do açucar e do sabão…
Ouvia conversas sérias… sussurradas …em tempos de ditadura…

Sem que eu entendesse o porquê … passou a haver dois tipos de pessoas:

1 – Aquelas que diziam mal do meu pai e de mais 2 ou 3 famílias …
porque queriam fazer uma escola primária e trazer a “luz” eléctrica … e que deixaram de nos “falar” e dizer “adeus” (cumprimentar com o bom dia ou boa tarde)

2 – E os outros, a maioria dos tios e primos, a família do Ti Antóino Carriço e os seus onze filhos e claro a nossa Ti Amélia e o Ti Nocêncio, que não só cediam a sua taberna para “a conspiração” necessária para “dar voltas” para conseguir trazer uma escola para as Cavadas, da qual usufruiriam também “os garotos” da Corujeira, que por sua vez, partilhava (e partilha) a capela da Santa marinha…

Como ainda…a Ti Amélia e o Ti Nocêncio…

Disponibilizaram uma sala das suas arrumações da loja (taberna/mercearia), “à época enorme”,
para dela fazermos uma Escola!! …Provisória…
e ainda uma pequena divisão no seu pátio, para fazer um WC, para os garotos da escola…

E em 1973-1974???, na minha primeira classe, deixei de precisar de fazer (sozinha!!) os 5 km de bicicleta que fiz durante metade do 1º ano lectivo e, pude passar a ir prá escola a pé, e até ir almoçar a casa, em vez de comer um pão com manteiga.

E mais … enquanto no primeiro semestre na escola da Lentisqueira, cantávamos o Hino Nacional, de pé e todos alinhadinhos…

Na nova escola, nas Cavadas, passamos a cantar o “Grândola vila morena”
Sentados nas carteiras, com os pés em cima dos bancos…(esta parte os pais não sabiam).

Foi por esta altura que começamos a beber o leite escolar:
– A Professora Teresa, que vinha de vespa de Cantanhede, sempre com as meias cheias de verniz (para segurar as malhas), trazia os sacos de leite do dia…
– A meio da manhã e da tarde, a professora colocava o leite no tacho, aquecia-o num mini fogão e com uma concha das de sopa, distribuía e enchia as nossas canecas de plástico.

No final íamos todos a correr para o pátio da Ti Amélia, para lavarmos as canecas com água e sabão azul, na “bomba” (manual) da ti Amélia.

Nos intervalos, jogávamos ao “ringue”, na estrada … entre duas curvas fechadas e sem visibilidade…
Inexplicavelmente, nunca houve nenhum acidente…
(“Ao menino e ao borracho…mete Deus as mãos por baixo”).

Durante quase quatro anos, em que corríamos desvairados pelo pátio, para ir ao WC, ou para lavar as canecas ou beber água na bomba…ou a jogar às escondidas e, com certeza fazer “asneiras” próprias da idade…

Nunca vi a Ti Amélia zangada nem a “ralhar” connosco … tinha sempre com um sorriso,
Mesmo quando era quase atropelada por nós, na sua própria casa.

Hoje, tenho a idade que ela deveria ter … admiro-lhe ainda mais a Paciência e Generosidade.

Este é um texto de reconhecimento, homenagem e gratidão a uma Grande Mulher Gandareza!!

Obrigada Ti Amélia!!

E até sempre!!

Maria Dulce Martins

2 Comments

  • Maria Lucia P. Frade 06/04/2024 at 5:09

    Olá, bonita história.
    Onde é que encontra para comprar, nos dias de hoje, o chapéu de gandareza?
    Minha avó tinha e o usava sempre.
    Tenho intenção de também ter o meu.
    Muito obrigada por dar a co hecer sua história.
    Maria Lucia Frade ( Briosa)

    Responder

    • Greenside of Sea Hostel 15/04/2024 at 16:14

      Olá,
      Atualmente não temos conhecimento onde se pode encontrar os chapéus.
      Muito obrigado pela atenção e pela simpatia.

      Responder

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